2008-05-04 14:17:00
O santo padroeiro do time mais popular de São Paulo também passou por uma espécie de "rebaixamento", mas nem por isso perdeu oficialmente a santidade. A trajetória de São Jorge, que teria vivido há cerca de 1.700 anos e cuja existência histórica é um bocado nebulosa, ajuda a contar a própria história da relação do catolicismo com seus santos. A ascensão e queda do santo guerreiro tem relação estreita com as mudanças sofridas pela Igreja ao longo dos séculos.
Antes de mais nada, é preciso deixar claro que São Jorge nunca foi despojado da condição de santo. "Nunca aconteceu de a Igreja declarar que alguém não era mais santo", explica o especialista em história religiosa Luiz Carlos Luz Marques, da Unicap (Universidade Católica de Pernambuco). "Ele não foi dessantificado, até porque muita gente continua acreditando em São Jorge e venerando o santo", afirma Marques. Sinais do culto a São Jorge são encontrados desde o século 5, cerca de cem anos após a época em que ele teria vivido.
As histórias dão conta de que Jorge era um oficial do exército romano, nascido na Capadócia (interior da atual Turquia) e convertido ao cristianismo durante o reinado do imperador Diocleciano. O soberano ordenou a última e mais virulenta perseguição aos cristãos e, como Jorge teria se recusado a abandonar sua fé, foi martirizado. A lenda conta que ele teria sobrevivido milagrosamente a vários suplícios antes de finalmente expirar.
Há indícios de que a imagem de São Jorge como um cavaleiro e matador de dragões tenha surgido durante as Cruzadas (dos séculos 11 ao 13), quando exércitos europeus lutaram na Terra Santa e absorveram a devoção dos cristãos orientais ao santo.
Como os cruzados eram liderados por cavaleiros da nobreza, São Jorge logo se tornou popular entre eles. A cruz de São Jorge (vermelha num fundo branco) é o mesmo símbolo adotado pelos cruzados, e o santo virou padroeiro de inúmeros países, como Inglaterra, Portugal, Grécia, Lituânia e Malta — sem falar no Corinthians, é claro.
Critérios mais rígidos- Durante muito tempo, o calendário de santos da Igreja foi bastante informal, e os critérios para canonização (a elevação oficial de um santo aos altares) variavam em rigidez. "Durante as Cruzadas, acontecia de simples nomes em túmulos na Terra Santa fossem identificados com santos.
No século 19, quando escavaram as catacumbas de Roma, houve uma onda parecida de santos, já que bastava morrer no martírio para alcançar a santidade", explica o padre José Oscar Beozzo, historiador e coordenador do Cesep (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular)."O problema é que nós hoje sabemos que as catacumbas abrigavam milhares de indivíduos de origens diferentes — havia cristãos, mas havia judeus e pagãos também", afirma.
A situação mudou consideravelmente após o Concílio Vaticano Segundo (1962-1965), reunião que deu novos rumos à Igreja no século 20. Os líderes católicos decidiram dar mais peso à Bíblia e à figura de Cristo nas missas e demais celebrações religiosas, diminuindo a ênfase nas festas relacionadas a santos.
Apenas as mais importantes, como as que envolvem São Pedro e São Paulo, considerados os principais líderes do cristianismo primitivo, continuaram a ser celebradas pela Igreja no mundo inteiro. E foi depois do concílio, em 1969, que São Jorge finalmente perdeu sua proeminência. "Ele saiu do calendário litúrgico de primeira classe. Pode ser festejado, mas isso fica a critério das igrejas locais", afirma Luiz Carlos Marques.
Outros santos tiveram o mesmo destino, como Santa Filomena, que começou a ser venerada a partir de 1808 com a descoberta de seu nome numa das catacumbas. "Mas, nesse caso, ela nem tinha chegado a ter um dia oficial de festas", diz o historiador da Unicap. "Quem era devoto de Santa Filomena realmente ficou meio perdido", diz o padre Beozzo.
Santo pop star- Para Marques, embora haja indícios muito fracos sobre a historicidade de São Jorge, a fé no santo surgiu da adequação das vidas dos mártires a uma série de modelos míticos que surgiram na literatura cristã antiga. "Você tinha biografias padronizadas para o santo, esquemas para falar da vida dele, que envolviam o santo bispo, o santo monge, o santo soldado etc.", explica. São Jorge virou o símbolo do soldado da fé. "Ele era visto como um astro, quase como um galã de novela, salvando a princesa do dragão", compara.
A tendência a tornar mais rígidos os critérios históricos para oficializar a santidade chegou a ser aplicada até contra a família de um papa. O italiano Bento XIV, que governou a Igreja de 1740 a 1758, estava avaliando o processo de beatificação de uma jovem chamada Imelda, aparentada a seus ancestrais, que tornou-se freira muito jovem e morreu no século 14. Como não havia provas seguras sobre a vida dela, decidiu não ir adiante.
Mais tarde, no começo do século 20, o papa Pio X, o primeiro a incentivar a comunhão entre as crianças, pensou em voltar ao caso, já que Imelda teria insistido muito para receber a Eucaristia e supostamente morrido em estado de graça logo depois de receber seu desejo, com apenas 11 anos.
"Mandaram abrir o túmulo dela e viram que ali havia de tudo, até ossos de animais. Por isso, não foram em frente com o processo", conta Marques. "Isso mostra que, mesmo quando há interesse da Igreja na canonização, as coisas não são feitas de brincadeira."